É absurdo o número de estupros e violência contra mulheres em universidades públicas e privadas brasileiras. Não há clareza ou precisão sobre o número exato, pois tais casos muitas vezes não são registrados. Faltam dados e sistemáticas de monitoramento.
Trata-se de uma violência oculta que precisa ser remediada. Há um machismo estrutural na sociedade brasileira que nos impede de tratar isso como uma questão de política pública e política universitária.
Os constantes relatos de violência que circulam nos mailings dos novos coletivos feministas no Brasil — um dos principais avanços da pauta progressista hoje — mostram que a situação no Brasil é grave. Toda semana tem-se notícia de algum caso de perseguição e stalking sobre alguma aluna, um relato de um estupro de uma estudante vulnerável em determina festa movida a álcool, ou algum episódio assustador de estupro coletivo ou violência com graves lesões físicas.
O que assusta em todos esses relatos nas universidades brasileiras não é só a violência e a agressão de determinadas pessoas, verdadeiramente criminosas, mas sim a falta de tratamento do problema da violência contra a mulher como uma questão de política universitária.
É como se os reitores e gestores dessas universidades ainda estivessem presos a um paradigma personalístico de crimes e violências. Eles dizem: “isso é uma questão de polícia, o indivíduo tem que ser responsabilizado”. No entanto, esse argumento deixa de perceber as questões estruturais que reforçam tais ações sociais.
Em outras palavras, não se percebe que o problema não está na responsabilização penal de quem comete a violência contra a mulher, mas sim na completa omissão e falta de estruturação de políticas universitárias que busquem reduzir tais violências. Tais políticas, em linhas gerais, envolveriam diversas ações, dentre elas:
- Criação de uma cultura de proteção e prevenção da violência contra a mulher, com a distribuição de brochuras e cadernos de boas-vindas para todos os universitários, alertando para esse problema grave;
- Criação de estruturas institucionais adequadas para a identificação de crimes contra a mulher e acompanhamento dos casos de violência com profissionais de assistência social e psicologia;
- Definição de responsabilidades entre gestores, com a criação de “vice-reitorias para prevenção da violência contra a mulher” e comprometimento com a produção de dados e redução dos casos;
- Humanização dos procedimentos burocráticos típicos da universidade e criação de um ambiente acolhedor e de restauração para alunas que sofreram violência;
- Criação de mecanismos de comunicação institucional entre “vice-reitoras para prevenção da violência contra a mulher” e troca de informações entre experiências descentralizadas de políticas públicas (aprendizado institucional em rede);
- Redefinição dos procedimentos administrativos para alunos que praticaram violência sexual contra membros da comunidade acadêmica;
- Definição de procedimentos específicos para violências sofridas dentro do campus e fora do campus universitário (festas e confraternizações);
- Responsabilização das universidades por omissão ou falha na execução da política de prevenção e redução da violência sexual contra a mulher;
- Mobilização das universidades para discussão da reconfiguração das leis de estupro e necessidade de consentimento verbal ou não-verbal para atividades sexuais (“um acordo positivo, consciente e voluntário de se envolver em uma atividade sexual”), considerando o alto número de estupros de mulheres que fizeram uso de álcool ou drogas;
Essas são apenas algumas ideias que apontam para uma reconfiguração do papel da universidade no combate à violência sexual. O ponto central é atacar a omissão existente atualmente, que é um problema crescente em todo o mundo.
Uma nova pesquisa realizada no Reino Unido mostrou que as ofensas sexuais e o sexismo estão em ascensão nas universidades britânicas. 1/3 das estudantes já sofreram algum tipo de abuso (groping/touching). Piadas sobre estupro também são comuns. A União Nacional de Estudantes pediu o fim da omissão por reitores e gestores de universidades.
Isso é urgente no Brasil também. É preciso replicar tal pesquisa aqui e realizar um evento com os reitores das principais universidades públicas do Brasil para tratar do assunto. As universidades precisam de políticas de conscientização e prevenção desse tipo de crime.
Encerro este texto com o último caso de violência sexual contra a mulher que recebi por e-mail hoje — mais um entre os incontáveis casos que já tomei conhecimento apenas esse ano. Ele simplesmente evidencia a necessidade de um ciclo de debates públicos sobre medidas para redução da violência contra a mulher e a omissão das universidades no trato desse tema.
É preciso agir.
Como disse a corajosa colega da Universidade de São Paulo, “se depender do descaso da universidade com a segurança das mulheres no campus, o numero de casos tende apenas a aumentar gerando novas vitimas, novos constrangimentos, novos medos”.
***
São Paulo, 01 de Outubro de 2014.
Estudo Geografia na USP. Estou no quarto ano.
No início de Março deste ano (2014) recebi bilhetes anônimos, colocados em minha mochila no intervalo das aulas. Eram “elogios” e declarações de uma “admiração” bizarra e constrangedora.
Constrangida e profundamente incomodada, comecei a andar com a mochila em todos os momentos, para que não houvesse mais oportunidades para a infeliz pessoa colocar outros recados.
As semanas passaram e os bilhetes começaram a aparecer então encostados no para-brisa do meu carro. Ainda mais assustada, comecei a estacionar o carro em outros lugares da faculdade, mas, em tom ameaçador, os bilhetes continuavam aparecendo: “você ainda vai ser minha”, “não pense que te esqueci”.
Comecei a evitar ficar sozinha. Avisei os amigos próximos para que me ajudassem a identificar alguém suspeito e comecei a ficar atenta à todos que me olhavam ou se aproximavam de mim. Uma angustia imensa.
Em uma segunda-feira, um amigo próximo que me fazia companhia na maioria das aulas, recebeu um bilhete em sua mochila: “ é melhor se afastar dela”. Em meu carro, fui alertada no dia seguinte “ Ele já foi avisado.”. Fui então até a Policia fazer o B.O, que tanto havia evitado. Sem suspeito, o B.O foi apenas um recurso burocrático à ser cumprido.
Comuniquei o caso, então, à professora que ministra a matéria durante a qual foram deixados os bilhetes na minha mochila, e na mochila de meu amigo. Bastante preocupada, me propôs que representantes dos docentes passassem em sala comunicando que o Departamento estava ciente do assunto. Acordamos que faríamos o necessário para que esse aviso ocorresse o mais breve possível, mas na mesma semana deu-se inicio à greve de professores e funcionários, que se estenderia ate o meio do mês de Setembro.
Com a greve, me mantive afastada do prédio da Historia e Geografia até dia 8 de Agosto (segunda-feira), quando combinei de encontrar com dois colegas no prédio, para conversarmos sobre um trabalho que deveria ser entregue quando as aulas fossem retomadas. Marcamos as 16h00. Cheguei 15 minutos antes, encostei o carro no estacionamento e, ao notar que meus colegas ainda não haviam chegado, decidi ir até a Faculdade de Arquitetura (FAU), para comprar um caderno. Sem descer do carro, segui até o estacionamento da FAU, onde estacionei o carro e desci. Caminhei até a entrada da faculdade, quando lembrei que havia esquecido o celular no carro. Voltei para buscar.
Abri a porta do carro e comecei a procurar o celular nos bancos da frente. Nesse momento fui surpreendida com um homem que veio pelas minhas costas me segurando pelo pescoço e forçando a entrada no carro. Sem que me deixasse ver seu rosto, porque me segurava com força e violência pela nuca, falou meu nome e em seguida “eu te avisei”, repetidamente. Ele me imobilizou e se deitou em cima de mim. Quando tentou abrir minha calça, consegui acionar a buzina do carro com meu joelho, alta e continuamente. O sujeito assustado bateu meu rosto com força na porta do passageiro, e fugiu correndo do carro, me impedindo de virar para tentar identifica-lo, uma vez que me recuperava da pancada.
Foi feito um novo B.O, e exame de corpo de delito.
Há pouco mais de uma semana as aulas foram retomadas e retornei ao prédio.
Por não ter como identificar o agressor, convivo diariamente com o medo e a desconfiança de qualquer olhar mais demorado. Não ando mais sozinha. Não fico mais em paz, em qualquer lugar da universidade Não me concentro, mal consigo assistir às aulas com o mínimo de atenção.
Torno público esse caso, apesar de estar profundamente constrangida, com alguns objetivos:
- Tentar prezar minimamente pela minha segurança, uma vez que a divulgação é um dos poucos recursos que me restam, e a publicização gera atenção das pessoas que transitam pelo prédio.
- Chamar a atenção para um problema sério dentro de nossa sociedade, e por conseqüência vivenciado constantemente dentro da universidade: os diversos tipos de assédios, violência e constrangimentos que as mulheres passam, pelo fato de sermos mulheres, em qualquer ambiente. Meu caso está longe de ser o único. O ambiente acadêmico, com todos seus privilégios, não está livre de casos como esses, e talvez seja a hora das pessoas abandonarem a crença de que os “problemas” de segurança da Universidade são trazidos por pessoas externas à esse meio.
- Atentar para o fato de que a USP é cenário de diversos casos de abusos, assédios e estupros, e os episódios são abafados ou ignorados. São considerados como casos a serem superados, acabando por ficar muitas vezes sem solução. Nesses casos (como é o meu), fica a cargo da vitima fazer sua própria segurança e buscar qualquer tipo de estratégia para que a situação seja solucionada. Se depender do descaso da universidade com a segurança das mulheres no campus, o numero de casos tende apenas a aumentar gerando novas vitimas, novos constrangimentos, novos medos.
Fonte: E-Mancipação