Isabel Brandão, psicóloga da Pastoral da Mulher, apresenta o tema Violação de direitos humanos e estigma na prostituição feminina, compondo a mesa sobre “Impasse e desafios” realizada no seminário A prostituição: uma abordagem desde os direitos humanos (23 de setembro, Escola de Direito Dom Helder Câmara).
O que é o estigma? É um sinal, é uma tatuagem, diz Isabel Brandão, que inicia sua apresentação com esta pergunta e com um trecho da fala de Monique Prada, prostituta de Porto Alegre, ativista conhecida nas redes sociais por criar debates relacionados ao feminismo e questões políticas em torno de sua profissão.
“Eu sou aquela cuja palavra é constantemente invalidada – eu sou uma proscrita, e para cada uma das palavras que escrevo há alguém que sabe mais do que eu, estudou mais do que eu e leu mais do que eu e portanto, pode falar melhor do que eu sobre as coisas da minha vida. Há sempre por perto uma pessoa que já leu sobre prostitutas, e então as prostitutas sobre quem ela leu valem mais que as prostitutas com quem convivi e a quem conheço tão bem. Elas sabem mais de nós do que nós mesmas, ou pensam saber – e seguir deixando que mulheres corram riscos por conta do estigma sobre suas profissões não lhes dói; o saber teórico delas parece ter mais valor do que nossas putas vidas.”
Monique Prada
O QUE É SER MULHER?
Para refletir o estigma, Isabel propõe algumas questões, dentre elas: o que é ser mulher? Ela traz a construção histórica do tema apoiada em três discursos que determinam o padrão hegemônico das condutas “normais e “desviantes” para as mulheres.
- Discurso religioso: santa versus pecadora. Mulheres eram vistas desse modo, especialmente na Idade Média (séc. XV a XVII) com a caça às bruxas. Neste discurso, todos os saberes femininos são destituídos. As curas e até mesmo os partos que as mulheres faziam eram considerados como feitiçaria. Por trás disso, aponta-se uma relação ambígua que envolve a mulher. No período neolítico ela tinha a posição de geradora, comparada à mãe terra, pois ela produzia um outro ser, como uma semente. Nessa época, o homem ainda não sabia qual a participação dele na reprodução; isso gerava medo e muitas fantasias ligadas à sexualidade que vai servir também para opressão da mulher.
- Discurso jurídico: matrimônio baseado no direito romano contribuindo para a inferioridade jurídica da mulher. Junto com a instituição do matrimônio, vem a reclusão da mulher no lar e fora do âmbito de acesso à produção de bens. O matrimônio vira uma forma legítima de se viver a sexualidade e um modo de oprimir a mulher.
- Discurso médico: diz que o destino biológico da mulher é ser mãe, deixando sua sexualidade restrita à reprodução. E parece que até hoje isso está em voga, pois a sociedade ainda enxerga a mulher como mama e útero, visto também nas políticas públicas de saúde.
“Esses três discursos convergem para um único ponto: o controle da sexualidade feminina. A consequência disso é a produção de uma identidade feminina a partir dessas construções, desses discursos que dizem que a identidade legítima de uma mulher é ser mãe e esposa.
É importante pensar que esse modelo de rainha do lar é quase escravocrata, mas constitui-se como legítimo, ressalta Isabel.
Nessa construção, o que funda a identidade feminina são as diferenças biológicas. O corpo feminino, até mesmo pelo ato sexual em si, no qual a mulher é penetrada, mostra uma destituição de poder e um abuso sobre o corpo do outro. As diferenças biológicas se convertem em elementos centrais que manifestam a hierarquia social (dita natural) entre homens e mulheres. E determinam-se aí comportamentos ditos naturais, mas que no fundo são opressivos.
Essas diferenças são a base para o estabelecimento de direitos sexuais desiguais para homens e mulheres; favorecem a criação dos conceitos de passividade (mulher) e atividade (homem) que perpetuam o modelo de dominação masculina sobre a mulher e naturaliza o desequilíbrio de poder entre os sexos; e são referências para a construção de estratégias pedagógicas para ensinar às mulheres o que é “ser uma mulher decente”.
No contexto de uma sociedade patriarcal, machista e capitalista em emergência, o controle da sexualidade estará a serviço de uma ordem econômica. Nessa época não havia DNA, então o nome era uma forma de garantir a paternidade, com a função de assegurar a patrilinearidade na transmissão de bens e recursos. Para conseguir essa segurança, a mulher era praticamente enjaulada socialmente. Em cima disso, constituiu-se um modelo hegemônico do que seja “normalidade”.
Propriedade do corpo feminino => garantia da paternidade => garantia de transmissão da herança.
RECURSOS PARA MANTER A ORDEM SEXISTA
“A prostituição é uma construção social com motivação pedagógica e está ali para nos ensinar o que acontece se nos afastamos do que é conveniente.” (Dolores Juliano)
Isabel ressalta que o status sexual da mulher está sempre sob suspeita (roupa que vestimos, o lugar que frequentamos e tudo o que fazemos colocará sob suspeita o nosso status sexual). Tudo é usado para justificar a desonra da mulher, sempre com foco na castidade e no pudor. Desde a infância aprendemos como nos comportar para não parecer uma “puta”.
Colocar sob suspeita o status sexual da mulher é uma estratégia disciplinar que desvia o foco do problema central, que é o questionamento do modelo de sexualidade, que estigmatiza quem não o segue. Com isso criam-se dois pólos: 1- mulheres decentes; 2- as indecentes (ou prostitutas). Isso enfraquece as relações de solidariedade entre as mulheres, que passam a reproduzir a opressão por temerem ser identificadas como “desviadas”, ou seja, a ameaça do estigma de “puta”mantém as mulheres subordinadas.
“Morreu violentada por que quis. Saía, falava, dançava. Podia estar quieta e ser feliz.” (Letra da música MÔNICA – Angela Rô Rô)
PROSTITUIÇÃO
A prostituição é uma instituição social que supõe intercâmbio de serviços sexuais por dinheiro. Mulheres que realizam esse serviço são estigmatizadas e discriminadas. Esse intercâmbio sexo-dinheiro tem determinada valorização ideológica, que leva à construção simbólica de valor ou desvalor, dependendo das instituições as quais pertence.
O ESTIGMA
O estigma é um sinal que se coloca sobre as pessoas que foram designadas para sofrer um trato discriminatório e se apresenta como uma construção social baseada em estereótipos que levam a preconceitos (pressupostos negativos), à discriminação e ao distanciamento social da pessoa estigmatizada.
O QUE É SER PROSTITUTA?
“Talvez pouca coisa seja mais reveladora da hipocrisia e moralismo irresponsável de nossos tempos do que não conseguirmos admitir que mulheres trabalhadoras estejam sendo sistematicamente isoladas de decisões sobre o trabalho que exercem, silenciadas, relegadas à categoria de seres não pensantes, empurradas para a clandestinidade ou mesmo mortas em série pela máxima culpa de uma sociedade que prefere o pânico moral à sensatez.”
Monique Prada
O estigma na prostituição vai ser consequência do modelo de sexualidade, dessa moral hipócrita, que estabelece direitos sexuais desiguais para homens e mulheres: o que é motivo de desonra para as mulheres é vanglória para os homens. Então, diante desse olhar, a mulher estará sempre restrita à esfera do lar, não poderá fazer sexo fora do âmbito afetivo ou reprodutivo. Além disso, estará limitada nas possibilidades de acesso aos próprios recursos econômicos, ressalta Isabel Brandão na sua perspectiva histórica.
A GRAVIDADE DO ESTIGMA
O estigma não se dirige à atividade, mas à pessoa, às mulheres que exercem a prostituição, neste caso. Pelo fato de exercer essa atividade, todas as violações de direitos e discriminações ficam justificadas pelo simples fato de terem feito uma opção que não confere com o padrão hegemônico da sociedade.
Ser puta vira o máximo castigo por ousar transgredir as normas patriarcais.
POR QUE AS MULHERES QUE EXERCEM A PROSTITUIÇÃO ESTÃO EM SITUAÇÃO DESFAVORÁVEL?
- Prostituição é vista como um forma de vida relacionada à delinquência, ao desajuste; puta significa sempre desonra e indignidade. Todo o entorno da prostituição passa a ser criminalizado.
- A atividade atribui uma identidade a quem a exerce: uma mulher não trabalha como prostituta, ela é uma prostituta.
- Esta é uma marca sem volta, que a acompanha por toda a vida. O descrédito em relação à pessoa que exerce esta atividade é tão amplo que a inabilita para uma aceitação social.
Então, apesar da história de luta das prostitutas, para reivindicar direitos a elas precisam mostrar a cara. Mas, diante de todo esse panorama, como fazer isso?
O ESTIGMA E SEUS DISCURSOS
Vítima: se a mulher está na prostituição por adversidade do destino, é melhor aceito pela sociedade, que a enxerga como vítima. Ela passa a ser aquela que precisa ser “salva”, “resgatada”.
Delinquente, subversiva: se a mulher escolhe a prostituição (opção legítima), ela será vista como subversiva. A prostituição é encarada como possibilidade de exercer liberdade, autonomia e resistência.
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Subversão Manifesta: ao vender sexo a mulher rompe com o modelo hegemônico (rainha do lar).
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Subversão Latente: Liberdade sexual e autonomia econômica.
Aqui, o que está latente é a liberdade sexual e econômica dessa mulher. A prostituição é um lugar que traz muita liberdade para as mulheres. Não há apenas coisas ruins, explica Isabel, que traz também alguns breves exemplos advindos de sua experiência na Pastoral da Mulher.
VIOLÊNCIA
- No Imaginário social, meios de comunicação e sociedade em geral: prostituição não é vista como uma atividade mas como uma identidade: a prostituta é vista como má mãe, má pagadora, vadia; mulheres manipuladas, mulheres exploradas e sempre vinculadas à delinquência.
- No trabalho: marginalização e vulnerabilidades de direitos (violência, insalubridade, “alta produtividade”). Há muita exploração econômica. Em Belo Horizonte, por exemplo, os locais de prostituição não oferecem condições adequadas, não têm a regulamentação, são insalubres etc. Muitas vezes, para cumprir o custo fixo do trabalho, que é o material de trabalho e o aluguel do espaço, a mulher precisa trabalhar demais para pagar isso e, só depois, começar a tirar o dela.
- No direito: a prostituição no Brasil não é crime, mas também não existe regulamentação de profissão. O pior vem com a perda de direitos humanos e civis pelo simples fato de ser prostituta. Se ela vai reclamar em uma delegacia, muitas vezes escuta: o que você estava fazendo lá?A Lei Maria da Penha é só para violência doméstica. Preconceitos e pânicos morais: prostituição vista como marginalidade.
- Social: assédio, culpabilidade em caso de abuso sexual, privação de liberdade e autonomia na vida sexual. Mesmo quando a prostituta não está no seu local de trabalho, ela é assediada como tal. Ela parece ser para os homens aquela mulher sempre disponível, o que prejudica sua autonomia e privacidade sobre a sua vida pessoal.
- No amor: corpo privado de uma sintonia afetiva; precarização das relações afetivas, inclusive familiares. Observa-se a dificuldade de se relacionar por ter que esconder seu trabalho, por manter uma identidade dupla.
- No campo psicológico: construção de um estereótipo socioafetivo para justificar a entrada na prostituição. Pensa-se sempre que a mulher veio de família pobre, desregrada, dentre outros fatores que marginalizam aquela pessoa. Mas nem todo mundo que tem dificuldades vai para a prostituição. É preciso entender as opções.
- Ambivalência do trabalho sexual: sentem vergonha do que fazem, o que as levam a viver uma vida dupla escondendo o que fazem. Elas escolhem o que fazem, mas têm medo de assumir.
- Autoestigma: identificação com o discurso dominante. Ela passa a se ver com os olhos daquilo que ela ouve sobre ela. Como ela vai exigir um reconhecimento social se ela se vê com esse olhar de discriminação?
“IDENTIDADE INDIVIDUAL E SOCIAL SOMENTE É POSSÍVEL QUANDO HÁ RECONHECIMENTO INTERSUBJETIVO”.
(AXEL HONNETH)
Isabel destaca que a violação de direitos se dá em três campos:
- Integridade física e psicológica: sujeitas a maus tratos, violência banalizada e dita como normal (nas relações sociais e afetivas).
- Integridade social: privação de direitos, exclusão (relações jurídicas) sem leis que regulamentem seu trabalho.
- Degradação e ofensa: morte social, identificada com o discurso dominante que não a reconhece como ser político e cidadã capaz de reivindicar direitos.
AUTOESTIGMA: O MÁXIMO DA VULNERAÇÃO DE DIREITOS
- Pré-concepções construídas sobre estereótipos obrigam a prostituta a esconder a atividade que exerce para evitar o preconceito e a discriminação. Exercer uma atividade que não tem valorização social é motivo de sofrimento e humilhação.
- Estigmatizada, a prostituta não poderá manter uma identidade positiva sobre si mesma, já que se vê com os mesmos olhos de quem a discrimina. A desqualificação social de determinados grupos as coloca como responsáveis pela própria “tragédia” e oculta a raiz social desses conflitos.
Para exemplificar o perigo do preconceito e do estigma, Isabel finaliza citando Judith Butler, que ao falar sobre homossexuais citou o caso de um rapaz que foi linchado pelo simples fato de estar andando com um andar feminino. Ela faz a seguinte pergunta: será que é legítimo determinar que uma pessoa não pode existir simplesmente por não concordarmos com a forma de vida que ela escolheu para viver?
Isabel Brandão: psicóloga (graduada em psicologia pela PUC Minas, pós-Graduada em Análise Institucional, Esquizoanálise e Esquizodrama. Trabalha desde 2008 na Pastoral da Mulher, com atenção individual e grupal para o nosso público alvo.
Referências:
- La reglamentación de la prostituición em el Estado Espanhõl- Gemma Nicolás Laz;
- El trabajo sexual em la mira. Polémicas e estereótipos – Dolores Juliano;
- Amor, um real por minuto – ThaddeusBlanchetie e Ana Paula da Silva;
- Luta por reconhecimento; A Gramática Moral dos Conflitos Sociais – Axel Honneth;
- A vueltas com La prostituicón – Holgado Fernández, Isabel;
- Profissionais do sexo – uma perspectiva antropológica do estigma da prostituição – Vanessa Petró.
Um comentário sobre “Violação de direitos humanos e estigma na prostituição feminina”