Falar sobre prostituição, especialmente a prostituição feminina, é despertar curiosidades e abrir espaço para diversos tipos de opiniões baseadas no senso comum. Para cada idéia há um clichê: profissão mais antiga do mundo, mal necessário (para atender aos homens que não conseguem controlar seus impulsos sexuais), mulher de vida fácil, desviada, pecadora, “aquela que não dá certo”, ou seja, para cada cabeça uma sentença. Contudo, para aprofundar nesse tema, antes se faz necessário entender o lugar que a mulher ocupa na história da humanidade.
Por Isabel C. Brandão
Como afirma Simone de Beauvoir, “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Esse pensamento denota que há uma construção histórica sobre o corpo feminino fundada em base a três discursos, estreitamente correlacionados, que determinam o lugar da “fêmea humana” no mundo. Esses discursos são: o discurso religioso, o jurídico e o médico.
Para entender o discurso religioso é necessário nos remontarmos ao período neolítico. As organizações sociais primitivas eram nômades, a produção de subsistência e não havia divisão sexual do trabalho. Devido a sua capacidade de fertilidade o corpo feminino, assim como a natureza, era fonte de mistérios despertando sentimentos ambíguos de medo, repulsa, atração e veneração.
À medida que a civilização avança no conhecimento das técnicas de agricultura, as comunidades humanas se fixam na terra, facilitando a sobrevivência e diminuindo sua dependência dos favores da natureza. Porém, por mais que consiga desvendar os mistérios da natureza o homem continua vulnerável às suas catástrofes que serão interpretadas como castigo ou ameaças divinas. A mulher antes idealizada e divinizada, como demonstra os cultos às deusas da fertilidade, se torna uma ameaça, pois sobre o corpo feminino se projetam as ameaças da natureza e as ações do demônio.
Já na Idade Média o Martelo das Feiticeiras ( Malleus Maleficarum), manual de caça às bruxas, cujas orientações foram seguidas por três séculos alimentando as fogueiras da Santa Inquisição, nos mostra a dimensão da misógina dessa época. Acreditava-se que as mulheres se tornavam bruxas copulando com Satã. Assim adquiriam poder para praticar todos os malefícios. Desde destruir as colheitas até tornar o homem impotente: “a mulher é um macho deficiente. Não é então surpreendente que este débil ser, marcado pela imbecillitas de sua natureza, ceda às seduções do tentador, devendo ficar sob tutela”. Summa Theologica, I, quaestio 92, q. 93 e q. 99).
A capacidade de “tornar o homem impotente” atribuída à mulher tem um o caráter simbólico que deixa latente a luta de poder e dominação que a “caça as bruxas” fomentava. O que de fato está em questão é o poder que tinham as mulheres, especialmente as camponesas, por serem parteiras e curadoras, transmitindo de geração em geração um saber de cura, o que lhes possibilitavam serem reconhecidas e formar coletivos nas comunidades onde viviam. O que estava em questão não era a transgressão da fé, mas sua capacidade de organização política.
Paralelo ao discurso religioso, o discurso jurídico, baseado no Direito Romano (século XII), nos permite investigar as origens das idéias de que a mulher é um ser frágil, com aptidão natural para as tarefas do lar e a procriação. A família romana era um núcleo extenso que se referia a todos os que estavam sob a tutela do “pater familia” não havendo necessariamente vínculo sanguíneo. Este não era um pai, mas um chefe que detinha o poder de vida e morte sobre os filhos, a esposa e os servos que habitavam seu “domus”. A família era composta por duas classes de pessoas as sui iuris e as alieni iuris. As primeiras eram sujeitos de direito e as segundas subordinadas àquelas. As mulheres pertenciam à classe das pessoas alieni iuris, explicitando sua inferioridade diante dos homens. Elas eram consideradas incapazes para a prática de atos da vida civil e jamais poderiam ocupara cargos públicos; caso tivessem irmãos eram excluídas da herança e até os 25 anos necessitam do consentimento do pai para se casarem. Certamente, apesar de todos os avanços, muitas destas idéias estão presentes sistema jurídico atual causando danos à vida das mulheres. A família patriarcal, inspirada no modelo romano de matrimônio é considerada o lugar legítimo para as relações sexuais, a procriação e a educação da prole. Nela está marcada a desigualdade de poder entre homes e a mulheres cuja conseqüência é a naturalização das condutas opressivas sobre a mulher, a limitação ao acesso a fontes de recursos próprios (a mulher deve permanecer no lar), a separação da esfera sexual e afetiva (para a mulher o sexo somente é lícito no casamento). Em última instância, o controle sobre o uso autônomo da sexualidade feminina está a serviço da ordem econômica que visa à estabilidade do sistema patriarcal garantindo ao homem a paternidade e a patrilinearidade na transmissão da propriedade e da herança aos seus filhos legítimos. Aquele que não é nomeado pelo pai será marcado com o estigma de como “filho da puta”, motivo de grande vergonha porque revela a conduta sexual transgressora da mulher.
O discurso médico (século XVI-XVIII) ao longo da história andou de mãos dadas com o discurso religioso, entendendo o adoecer como castigo e punição vindos dos céus. A medicina atravessou períodos de obscurantismo pelo cerceamento às pesquisas de cunho científico/experimental imposto pela religião. O corpo masculino era por excelência o modelo de corpo humano, sendo a mulher considerada um homem mal acabado. Seu corpo e seus ossos eram mais fracos e frágeis comparados ao corpo musculoso do homem. O sangue menstrual e os resíduos do parto sempre foram alvo de preconceito. A ponto de se pensar que a melancolia era fruto dos vapores desprendidos do sangue menstrual provocando alucinações e histeria. Vista como um receptáculo de sementes que deveria ser fecundada pelo macho naturaliza-se o destino biológico da mulher: ser mãe; sendo sua sexualidade restrita à reprodução. As diferenças biológicas entre homens e mulheres serviram de base para sedimentar a inferioridade feminina.
As ideologias patriarcais e de gênero vinculadas à sexualidade interferirão na vida pessoal das mulheres marcando-as com identidades estereotipadas: mãe-esposa, notadamente fonte de reconhecimento social produz uma identidade positiva e as “desviadas”, “as outras” cujos comportamentos sociais serão classificados como marginais ou patológicos. Por este motivo Dolores Juliano afirma que “puta” é uma construção social com motivação pedagógica. Ser identificada como “puta” será o castigo máximo por transgredir as normas patriarcais, independentemente da atividade que exerce: “olha o que acontece se nos afastamos do que é conveniente”.
Sobre essas bases é construído o imaginário popular sobre o que é ser prostituta. Segundo Judith Buttler “a obrigatoriedade de se adequar exige que certos tipos de identidade não possam existir”. As prostitutas, assim como outras minorias (negros, lésbicas, homossexuais, dentre outras) , são silenciadas pelo discurso da patologização ou vitimização: “aquele que não deu certo.” Vivemos em uma sociedade que admite a liberdade sexual e as relações sexuais instáveis. Por que então a pessoa que exerce a prostituição segue marginalizada?
O preconceito e a discriminação criados em base a um viés de gênero, classe social e etnia, camuflam os conflitos sociais, políticos e econômicos gerados no e pelo o laço social. Questões pessoais relacionadas a “quem somos”, “como agir”, quando dirigidas aos coletivos se tornam questões políticas, indicando que há relações de poder, cujas regras nem sempre se expressam com clareza. No fundo o que está em jogo é o valor da vida de “uns” e de “outros”. Marcada com a identidade social de “excluída” as mulheres que exercem a prostituição serão questionadas sobre a legitimidade de suas escolhas. Serão consideradas como vítima da própria ignorância, portanto sem autonomia para decidir sobre a própria vida. Caso se considere que há alguma legitimidade em sua escolha e, portanto não é uma vítima incapaz, sobre ela pesará o discurso de puta vadia, insulto que por se só justifica todas as agressões que possa sofrer. O estigma se estende para além da atividade imprimindo uma identidade que desqualifica as pessoas que exercem a atividade.
O exercício da prostituição conta com a conivência da sociedade, sendo considerado “um mal necessário” desde que segregado nos “territórios de exceção” onde as regras de exercício da atividade são estabelecidas pelo rufião que para a legislação brasileira é considerado criminoso. Embora exercer a prostituição não seja crime qual é a lei que protege a mulher caso tenha seus direitos violados? Quando uma prostituta trabalha em um lugar insalubre, sujeita a exploração econômica, agressões e humilhações onde irá reclamar?
O estigma é um mecanismo de controle tão efetivo que leva as trabalhadoras sexuais a viver uma vida dupla escondendo o que fazem. Por isto têm dificuldades de reivindicar direitos: “o que vou reivindicar se tenho vergonha do que faço?”
Como podemos colaborar para minimizar os impactos que a discriminação e estigma causam na vida das mulheres que exercem a prostituição?
Todos os dias a impressa divulga casos de violência contra a mulher, notadamente a violência doméstica cometida por companheiros e ex-companheiros. Entre março de 2016 e março de 2017, segundo dados dos Ministérios Públicos estaduais foram registrados ao menos oito casos de feminicídio por dia. No total, foram 2925 casos no país, aumento de 8,8% em relação ao ano anterior. Certamente a violência contra a mulher vai além da atividade que ela exerce, sendo fruto de uma construção histórica retrógada e ultrapassa, mas que ainda teima em lesar pessoas.
Tendo em vista “a história da fêmea humana na história da humanidade” e ouvindo o que as trabalhadoras sexuais dizem podemos compreender que o próprio estigma se encarrega de manter a mulher na prostituição quando aponta o trabalho sexual como uma possibilidade de fonte laboral de sobrevivência já que grande parte dos trabalhos destinados às mulheres são precários e desvalorizados. Sob esta ótica o trabalho sexual pode ser menos escravizante e opressor que outros trabalhos, além de ser melhor remunerado, sendo uma possibilidade de inserção social e ascensão econômica
. Sabemos que nos espaços de exercício da prostituição ocorrem várias violações de direitos, porém, se queremos respeitar as pessoas que ali estão devemos rever conceitos e preconceitos para não vitimizá-las e que possam exercer sua ocupação livres de marginalização, humilhação, violência, exploração econômica, reconhecendo-as como sujeitos de direitos.
Citando uma trabalhadora sexual nos questionamos:
“Eles colocam todas as nossas qualidades de lado e julgam a exposição do ser humano. Porque está exposta ali não presta, não vale nada? Esta pessoa não cuida bem do filho, não trata bem o filho? Não é um bom ser humano, não se comporta bem em sociedade? Eu sou; então por que eu não presto? A gente tem qualidades além de nossa profissão. Só isto.”
Bibliografia
Mulher no direito romano: noções históricas acerca de a cerca de seu papel na constituição da entidade familiar – Leda de Pinho – www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/428-1364-1-pb.pdf
História das mulheres no Brasil – Mary Del Priori https://books.google.com.br/books?id=8KgRl5ZvX8wC&pg=PA79&lpg=PA79&dq=destino+biol%C3%B3gico+da+mulher&source=bl&ots=NtYFQJTIWN&sig=ZcYkLp4dUS4N7EOUQ2-u_6lj3KQ&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwi58vaMhtjZAhVkkeAKHZaiA0oQ6AEIMTAC#v=onepage&q=destino%20biol%C3%B3gico%20da%20mulher&f=false
El trabajo sexual en la mira. Polémicas y estereótipos – Dolores Juliano
http://www.revistas2.uepg.br/index.php/rlagg/article/viewFile/8043/Artigo
História do medo no Ocidente 1300-1800- Uma cidade sitiada- Jean Delimeau