Hoje (18), celebramos o dia nacional de combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes. Este dia se tornou um marco com o objetivo de mobilizar e sensibilizar a sociedade quanto a importância do assunto. Desde o Projeto Oblata Diálogos pela Liberdade nos unimos a esta campanha na defesa dos direitos infantis no Brasil, e pulicamos um artigo elaborado pela psicóloga da nossa Entidade, Isabel C. Brandão.
Exploração Sexual
Por Isabel C. Brandão
Psicologa do Projeto Oblata Diálogos perla Liberdade
Introdução
A violência contra crianças e adolescentes é um fenômeno, social construído historicamente, que sempre esteve presente no meio familiar e na sociedade. É um relevante problema social e de saúde devido às graves interferências provocadas no desenvolvimento pleno dos indivíduos vítimas desta situação. Para sua superação é necessário romper com a construção histórica que “naturaliza” a violência e a cultura adultocêntrica dominadora e patriarcal.
Esse tipo de violência pode ser definido como: atos ou omissões dos pais, parentes, responsáveis, instituições e, em última instância, da sociedade em geral, que redundem em dano físico, emocional, sexual e moral às vítimas, seres em formação. (BRASIL, 2001; ASSIS; GUERRA, 1996; DESLANDES, 1994; ASSIS, 1994).”
Suas principais manifestações são: violência física, negligência, violência psicológica e o abuso sexual infantil que se inter-relacionam de tal forma que um tipo de violência pode levar a outra. Neste estudo focaremos no abuso sexual infantil e na exploração sexual.
Embora no Brasil exista uma grande carência de dados sobre a violência sexual de crianças e adolescentes estudos demonstram que alguns fatores como pobreza, exclusão, desigualdade social, questões relacionadas à raça, gênero, etnia e falta de conhecimento sobre os direitos das crianças aumentam a vulnerabilidade destes indivíduos.
Conceituação / as origens da violência
”A violência intrafamiliar é um problema social de grande dimensão que afeta toda a sociedade atingindo, de forma continuada, especialmente mulheres, crianças, adolescentes, idosos e portadores de deficiência… Quando se fala de violência intrafamiliar, deve-se considerar qualquer tipo de relação de abuso praticado no contexto privado da família contra qualquer um dos seus membros. As estatísticas são eloquentes ao assinalar o homem adulto como o autor mais frequente dos abusos físicos e/ou sexuais sobre meninas e mulheres. No entanto, o abuso físico e a própria negligência às crianças são, muitas vezes cometidos pelas mães, e no caso dos idosos, por seus cuidadores”. (Violência intrafamiliar Orientações para a prática em serviço Cadernos de Atenção Básica Nº 8 Série A – Normas e Manuais Técnicos; nº 131 Brasília/DF 2002 Ministério da Saúde).
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, a cada ano cerca de 40 milhões de crianças com idade inferior a 15 anos são submetidas a abusos físicos, psicológicos e sexuais.
Pesquisas realizadas pelo Laboratório de Estudos da Criança — LACRI sobre violência doméstica, contra a criança, no Brasil, revelam que em 2005 foram notificados 19.245 casos distribuídos em negligência (40,2%); física (26,5%); psicológica (18,9%); sexual (14,2%) e fatal (0,2%). Segundo dados do IBGE em 2010 no Brasil a população de adolescentes era de 63 milhões, sendo que 46% das crianças e adolescentes menores de 14 anos vivem em domicílio com renda per capta até meio salário mínimo e 132 mil lares são chefiados por crianças entre 10 e 14 anos.
Em 2016 as 133 mil denúncias de violência recebidas por meio do Disque 100 76 mil se referem a essa faixa etária.
Esses dados apontam para a necessidade de avaliar as relações familiares e suas múltiplas facetas. Como um espaço que deveria ser de proteção se torna violento?
A ocorrência da violência infanto juvenil no âmbito familiar está muitas vezes baseada em uma relação de poder desigual entre a vítima e ao agressor. Esse poder pode ser tanto econômico, geracional, de força física, de classe social, ou mesmo de gênero e tem raízes históricas.
Na sociedade medieval não havia um tratamento diferenciado para as crianças. Nas pinturas da época elas estão representadas como adultos em miniatura, sendo vestidas e expostas aos mesmos costumes dos adultos. Somente a partir do século XVIII com o surgimento das lutas sociais pela cidadania é que surge o entendimento da criança como sujeito de direito. O discurso de conservação das crianças que surge neste período é construído em conexão com o registro médico e o social tendo dois polos distintos com estratégias diferentes. As crianças burguesas, antes cuidadas pelas amas de leite são colocas sob a vigilância dos pais para evitar a influência negativa dos serviçais. E as crianças pobres terão seus destinos controlados pelo Estado visando à moralização dos costumes e a obtenção de mão de obra para as tarefas braçais. A famosa roda dos enjeitados, mecanismo de recebimento de crianças abandonadas instalado nas casas de misericórdia (sec. XII a XVII), nos mostra a discrepância do destino dos que nascem das uniões familiares legítimas e os dos “restos indesejáveis” do regime familiar desviado.
A demora no reconhecimento das crianças como sujeito de direitos ainda hoje se manifesta na conduta de muitos pais quando esses consideram que tem poder de vida e morte sobre os filhos e que a humilhação, a punição e a violência física são necessárias para educar. “Os comportamentos violentos dos homens tem sua referência no contexto normativo de construção da masculinidade. Sentimentos pessoais de insegurança e impotência relativos podem ser negados e liberados através da violência. Mesmo de forma fugaz, o agressor tem uma sensação de grandiosidade através da humilhação da sua vítima e da submissão desta. Trata-se de uma forma de demonstração de poder que não encontra, entretanto, qualquer correspondência de alívio interior, tendendo, a gerar cada vez um nível de irritabilidade maior, devido à depressão que se segue.” (Violência intrafamiliar Orientações para a prática em serviço Cadernos de Atenção Básica Nº 8 Série A – Normas e Manuais Técnicos; nº 131 Brasília/DF 2002 Ministério da Saúde).
Ciclo da violência contra crianças e adolescentes – Expectativas x abuso de poder
“A violência intrafamiliar pode ser potencializada pela violência estrutural que é “aquela que incide sobre a condição de vida das crianças e adolescentes, a partir de decisões histórico-econômicas e sociais, tornando vulneráveis suas condições de crescimento e desenvolvimento. Por ter um caráter de perenidade e se apresentar sem a intervenção imediata dos indivíduos, essa forma de violência aparece naturalizada, como se não houvesse nela a intervenção dos que detêm o poder e a riqueza. A maior expressão desse tipo de violência é o fato de, dentre 60 mil crianças e adolescentes brasileiros de 0 a 17 anos (Censo de 2000), 20 mil (34,8%) se encontrarem em situação de pobreza, vivendo em famílias com renda mensal de até meio salário mínimo per capita. Em regiões mais pobres como o Nordeste, esse percentual chega a 58,8%, evidenciando a gravidade e a persistência das precárias condições de vida em geral e, sobretudo, da infância e juventude. A violência estrutural tem várias formas-limite de manifestação. As três maiores expressões de vulnerabilidade são: a existência de meninos e meninas vivendo ou trabalhando nas ruas; os meninos e meninas trabalhando para sobreviver e a vida de meninos e meninas dentro das instituições de privação de liberdade.” (Violência Faz Mal à Saúde CAPÍTULO III Violência contra Crianças e Adolescentes: Questão Histórica, Social e de Saúde Raquel Niskier Sanchez, Maria Cecília de Souza Minayo)
Portanto, compreende-se que a violência de que são vítimas crianças e adolescente é acima de tudo uma violação dos direitos humanos. E embora não escolha classe social, raça, credo, etnia, sexo e idade as manifestações de violência são mais visíveis nas situações de desigualdade e injustiça social.
Abuso sexual infantil
Por abuso sexual infantil entende-se todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual, em que o agressor esteja em patamar de desenvolvimento psicossocial mais avançado do que a criança ou o adolescente, com o objetivo de estimulá-la sexualmente ou utilizá-la para obter satisfação sexual. Os atos praticados podem envolver contato sexual com penetração, coito oral, coito vaginal ou anal e atos sem penetração tais como manipulação dos órgãos genitais, beijos, masturbação, pornografia, produção de fotos, exibicionismo, telefonemas obscenos.
Consequências para a vítima
Muitas variáveis estão envolvidas no impacto que este tipo de violência causa na vida da vítima bem como na sua capacidade de superação. Tanto nos casos de abuso incestuoso como nos casos de assédio sexual, são relevantes as normas familiares, nas quais preponderam a autoridade parental e a reverência a esta autoridade (temor reverencial), mesmo quando há ameaça, constrangimento e abuso sexual.
Famílias nas quais as relações de poder são autoritárias e se sustentam nas desigualdades de gênero e sociais, onde a tensão e o conflito são permanentes, com pouca abertura ao diálogo e aos contatos externos tendem a padrões repetitivos de condutas agressivas.
Devido ao alto grau de reprovação social a violência sexual costuma ser mantida em sigilo pela família dificultando a ruptura do ciclo de violência.
Com relação à vítima alguns fatores interferem na possibilidade de superação do trauma causado pela violência vivida: a idade da criança e a duração do abuso; as circunstâncias e a existência de ameaça; a ordem de relacionamento com o abusador; e a inexistência de figuras parentais protetoras. Como afirma a literatura o impacto do abuso sexual sobre a saúde da criança é ainda maior quando a violência se perpetra em relações praticadas por indivíduos com fortes vínculos afetivos, como os pais ou membros outros da família, gerando sentimentos ambíguos, especialmente por criança não tem capacidade emocional ou cognitiva para consentir ou julgar o que está acontecendo.
Pessoas que passaram por este tipo de violência tendem a repetir o ciclo praticando o abuso sexual intergeracional com os próprios filhos; podem desenvolver quadros depressivos, transtorno de ansiedade, alimentares e dissociativos, hiperatividade, déficit de atenção, desvio de personalidade, sentimentos de culpa, desconfiança, comportamento autodestrutivo e ideias suicidas.
Exploração sexual de crianças e adolescentes
A exploração sexual de crianças e adolescentes (ESCCA) é definida como uma relação de mercantilização e abuso do corpo de crianças e adolescentes por exploradores sexuais, sejam as grandes redes de comercialização local e global, pais/responsáveis ou os consumidores de serviços sexuais pagos. A literatura destaca quatro formas de exploração sexual comercial, quais sejam: a pornografia, o turismo sexual, o tráfico para fins sexuais e a “prostituição” (Libório, 2004; Libório & Martinez, 2002).
O tema da exploração sexual de crianças e adolescentes ganhou relevância na década de 90 com a realização da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou as denúncias do comércio sexual envolvendo menores de 18 anos de idade (Libório, 2003). A análise dos depoimentos dessa CPI mostrou que os caminhoneiros são um dos principais personagens envolvidos no fenômeno da ESCCA, juntamente com os pais das crianças e adolescentes explorados, os policiais e donos de boates.
Em mapeamento realizado pela Polícia Rodoviária Federal em 2013-2014 foram identificados 1.969 pontos vulneráveis em rodovias federais de todo o Brasil. Deste total, 29% são considerados pontos críticos. (Dados da Safernet Brasil)
Para compreender o fenômeno da exploração sexual é necessário um amplo entendimento das realidades econômicas, sociais, culturais e políticas envolvidas tanto na formação da demanda quanto da oferta do comércio sexual. Tão importante quanto perguntar a uma criança/adolescente ou a outras pessoas o porquê delas se “prostituem” é perguntar o porquê de algumas pessoas preferirem fazer sexo e/ou serem clientes do comércio sexual de crianças e adolescentes
Caminhoneiros pesquisados (Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes: Um Estudo com Caminhoneiros Brasileiros – Normanda Araujo de Morais, Elder Cerqueira-Santos Andreína da Silva Moura Marlene Vaz Sílvia Koller) ao responderem sobre os motivos pelos quais as crianças “se prostituíam”, apontaram a necessidade financeira com principal motivo além da falta da educação, problemas na família, uso de drogas e falta de opção e perspectiva de vida.
Os motivos apontados por alguns homens para preferirem fazer sexo com crianças e/ou adolescentes estão relacionados à afirmação da masculinidade e aumento da auto estima dado que ser capaz de seduzir e manter relações com um maior número de mulheres e, de preferência mais jovens é o padrão social esperado de um “macho”. A falta de preocupação com a idade das adolescentes representa uma característica comum aos clientes da ESCCA e é bastante elucidativa do preconceito e culpabilização com que as crianças e adolescentes prostituídas são vistas, a medida que os usuários consideram que “elas sentem prazer e gostam de sexo” a medida que consentem com o ato. Atrelada a esta questão está a visão da criança como responsabilidade apenas de sua família minimizando a responsabilidade do cliente por suas atitudes. Tal concepção representa, ainda, o desconhecimento e/ou naturalização de alguns importantes condicionantes do fenômeno, quais sejam: a realidade sócio-econômica de pobreza em que essas crianças e adolescentes vivem, os valores sociais de gênero, padrões de beleza e as motivações relacionadas à formação da “demanda” pelos homens que são clientes do comércio sexual infantil.
Conclusão
Devido a complexidade do fenômeno de violência e violações de direitos a que estão submetidos os adolescentes e crianças as intervenções devem ser multidisciplinares. É indispensável um trabalho conjunto, em consonância com as Coordenadorias da Infância e da Juventude, Conselhos Tutelares, escolas, serviços de saúde, sistema jurídico, polícia, serviços de fronteira e outros órgãos de proteção, assim como um trabalho contínuo junto à família dando a ela os recursos necessários para que possam proteger suas crianças. Também é fundamental que a sociedade seja sensibilizada para a gravidade desta situação e se mobilize para a promoção de ações e atitudes que coíbam a ocorrência destas violações de direitos.
Bibliografia
– Exploração sexual de meninos e meninas: rompamos o silêncio! https://www.unicef.org/brazil/pt/media_13759.
– CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA AO LONGO DA HISTÓRIA Mariane Rocha Niehues; Marli de Oliveira Costa;
– http://www.childhood.org.br/causas-da-violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes
– Magalhães Carvalho, Quitéria Clarice, Batista Braga, Violante Augusta, Gimeniz Galvão, Marli Teresinha, Moreira Leitão Cardoso, Maria Vera Lúcia, IMAGINÁRIO DE MÃES DE CRIANÇAS VÍTIMAS DE ABUSO SEXUAL: UM IDEAL DE SUPERAÇÃO. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste [en linea] 2010, 11 (Julio-Septiembre) : [Fecha de consulta: 28 de marzo de 2018] Disponibleen:<http://www3.redalyc.org/articulo.oa?id=324027971006> ISSN 1517-3852
–Violência intrafamiliar Orientações para a prática em serviço Cadernos de Atenção Básica Nº 8 Série A – Normas e Manuais Técnicos; nº 131 Brasília/DF 2002 Ministério da Saúde
– Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes: Um Estudo com Caminhoneiros Brasileiros, Normanda Araujo de Morais2 Elder Cerqueira-Santos Andreína da Silva Moura Marlene Vaz Sílvia Koller Universidade Federal do Rio Grande do Sul