Acolher e ouvir
Faz parte da rotina diária de meu trabalho acolher e ouvir as mulheres que exercem a prostituição. São treze anos de aprendizado cotidiano. Lido com dores existenciais, geralmente, marcadas por privação de direitos humanos fundamentais, aos quais todo ser humano deveria ter acesso para garantir sua dignidade.
Como psicóloga sou interpelada a dar “respostas” às dores que me são relatadas, mas minha angústia pessoal somente possibilita a formular perguntas. Habito um corpo de mulher, meu corpo registra cada dor que ouço. Imagino o desamparo da criança que foi violentada por aqueles que deveriam protegê-la; “eu era muito pequena, tinha cinco anos. Meus tios são gêmeos, então não sei direito qual foi. Tenho só uma suspeita.” A dor de ouvir “você tem o espírito da prostituição, é preguiçosa, vai ser puta.” E depois ter que confirmar “a maldição” que ouviu da própria mãe: “virei puta.”
Durante muito tempo acreditei que, a razão das inúmeras dificuldades que me relatam, pudesse ser atribuída a falta de estrutura familiar e a precarização dos cuidados na primeira infância. Hoje vejo que restringir a compreensão da história de vida destas pessoas a este detalhe é ignorar as desigualdades sociais que já nascem no berço. É revitimizar famílias que sofrem com o estigma de “negligentes”, quando na verdade lutam para criar seus filhos em um mundo adverso, injusto e desigual.
Para as mulheres que nascem numa sociedade machista e patriarcal as possibilidades de ascensão social podem estar restritas a “um bom matrimônio” ou a prostituição. E de fato muitas mulheres esperam encontrar na prostituição o “príncipe encantado’, aquele que a tiraria “daquele lugar”, mas isto raramente acontece.
Considero que a prostituição não inaugura as situações de vulnerabilidade. Muitas vezes ela é a porta que se abre para fugir da cultura do estupro, do rompimento de relações familiares e da precarização econômica. É neste contexto de adversidades que, para algumas mulheres, a prostituição surge como possibilidade de romper com o ciclo de desamparo material e humano que se perpetua por diversas gerações.
O território da prostituição tem suas especificidades. A zona é uma porta aberta, ninguém precisa apresentar referencias ou credenciais de bons antecedentes. Não há necessidade de qualificação profissional. Talvez por isso se diga “fazer vida” porque é a vida que ensina.
Os homens poderão ser frágeis, viver fantasias, fetiches e desejos dos quais se envergonham e pelos quais seriam estigmatizados. E a prostituta será a “psicóloga”, guardiã fiel das dores e prazeres que lhe são confiados. Ah! A sexualidade humana! Terra de ninguém onde
“mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno, vai abençoar
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo.”
(Chico Buarque de Holanda)
Por outro lado, cada vez que a porta de um quarto se fecha com um homem estranho sentirá medo, insegurança, nojo. Mas terá que superar tais sentimentos, afinal esse é seu “trabalho”. Cada toque “deixa digitais, como uma tatuagem que me faz sentir suja e que nem mil banhos podem limpar.” E mesmo que o corpo e alma estejam moídos de dor fingirá prazer para que o macho se vanglorie de sua masculinidade.
Há forças de poder nem sempre explícitas nesta relação homens versus mulheres. São corpos interpelados em sua especificidade erógena, determinados por uma rede de interseccionalidades. Ambos construídos em sua subjetividade por uma herança patriarcal-capitalista que determina os modos legítimos de pertencimento social de cada ser humano. E, com certeza, a prostituição não é um lugar de reconhecimento social para a mulher.
Para enfrentar o estigma que tanto descrédito traz, as mulheres se apresentam como trabalhadoras sexuais, uma forma de obter legitimidade social e fugir da pecha de vagabunda, vadia.
Será que podemos considerar a prostituição um trabalho dado que cola na mulher o estigma de puta, vagabunda além de não ter valorização e reconhecimento social?
Um eterno automatismo: “três posições e uma chupadinha”, linha de produção fordista na qual não se pode exercitar a liberdade e a criatividade – não que em outros trabalhos isto seja possível. Lembro-me de uma mulher que me disse ter a meta de atender oitenta homens por semana e outra que se perguntava: ‘só sirvo para isso?’
Mil justificativas capitalistas: “não vendo meu corpo, somente alugo”; “meu corpo minhas regras.” Um pacto de anuência com as regras injustas do jogo no qual pouco se reflete sobre a crueldade do imperialismo econômico-machista.
Aquilo que a alma cala o corpo grita. São inúmeras as queixas de depressão, ansiedade, insônia e falta de sentido para a vida. Fácil argumentar que toda a humanidade está passando por uma crise em que o sofrimento psíquico ganha força.
Muitas pessoas pensam que a mulher está ali porque quer, que é uma escolha. Quem sabe escolhas “pré-escolhidas” ou pré-determinadas pelos vieses de gênero, raça e socioeconômico.
Muito tenho aprendido a partir desta experiência. Especialmente, que o saber acadêmico-teórico vale muito pouco se não houver um ser humano diante de outro ser humano, que se coloque a disposição para ouvir e acolher, sem “pre-julgamento”s ou “pre- conceitos”. E como nos ensina a pedagogia de Antonia , fundadora da Congregação das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor , cujo carisma é acolher as mulheres que exercem a prostituição, “pouco a pouco, somente pouco a pouco”, podemos sanar as feridas.
Isabel Brandão – Psicóloga do Projeto Diálogos pela Liberdade